Crítica | Nise: O Coração da Loucura (2024)

Uma tendência na cinematografia brasileira que aos poucos cresce é a das cinebiografias. Filmes como Tim Maia, de 2014, e Gozanga: De Pai para Filho, de 2013, são exemplos dessa vertente do cinema nacional. O mais novo exemplo é Nise: O Coração da Loucura. O longa conta a história da psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999) que revolucionou o tratamento de pessoas com problemas mentais, principalmente, os com esquizofrenia.

A história do longa inicia-se em 1944, quando a Doutora Nise (Gloria Pires, de Linda de Morrer) retorna ao trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional Dom Pedro II, em Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. Ela tinha sido presa durante o Estado Novo – a ditadura de Getúlio Vargas – ao ser denunciada por uma enfermeira por ter livros marxistas. Como Nise não aceitou os “métodos” utilizados para o “tratamento” dos pacientes utilizados pelos seus colegas de instituição, o diretor do Centro, Dr. João (Zécarlos Machado, da série Sessão de Terapia), designou-a para o Setor de Terapia Ocupacional.

Ao assumi-lo, a Doutora Nise, literalmente, arregaça as mangas e ajeita o espaço designado para o STO, com ajuda de apenas de dois enfermeiros: Ivone (Roberta Rodrigues, da última novela das 21h, da Rede Globo, A Regra do Jogo) e Lima (Augusto Madeira, do programa Zorra Total). Este, contrariado com as novidades trazidas pela doutora.

Com o espaço arrumado, a psiquiatra começa a convidar os pacientes do Centro a entrarem. Desta forma, Fernando (Fabricio Boliveira, de Faroeste Caboclo). Raphael (Bernardo Marinho, da série Aline), Adelina (Simone Mazzer, de Entre Abelhas), Lucio (Roney Villela, da série Magnifica 70) e mais alguns começam a ser tratados de uma maneira muito diferente da que vinham sendo até então. Aos poucos, algumas pessoas percebem o que Doutora Nise estava tentando fazer e começam a ajuda-la, como o médico Almir (Felipe Rocha, da série Lili, A Ex). Ele é aficionado por artes plásticas e propõe a doutora que os pacientes poderiam pintar. Após começar esse trabalho com eles, Almir acaba convidando para trabalhar no setor a estudante de artes plásticas, Marta (Georgiana Góes, da série Questão de Família).

O diretor, Roberto Berliner, de documentários como A Pessoa É Para o Que Nasce (2003) e Herbert de Perto (2009), escreveu o roteiro de Nise: O Coração da Loucura. Mas ele dividiu o trabalho com outras seis pessoas. Mauricio Lissovski trabalhou anteriormente com Berliner em A Pessoa É Para o Que Nasce. Maria Camargo tem experiência em roteiros para televisão. Ela escrevia para a novela Lado a Lado (2012) que ganhou o prêmio de melhor série televisiva no International Emmy Award 2013. Leonardo Rocha e Chris Alcazar são os novatos dessa turma na arte da escrita para o cinema.

Esses setes roteiristas conseguiram transformar o inicio da carreira de Nise da Silveira em uma história inspiradora. Eles transpuseram para a tela grande a atenção, a sensibilidade e o respeito ao ser humano que Nise demonstrava ao clinicar. Poderia ter ficado bem confusa dada à quantidade de escritores e à quantidade de histórias dentro da história que poderiam ser mostradas como exemplos do trabalho fantástico realizado pela doutora. Porém, sem didatismo e sem ser piegas, Berliner e sua turma conseguiram produzir um roteiro coerente e que revela vários aspectos do trabalho da médica. Por exemplo, a linha de trabalho dela que era baseada no psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875 – 1961), com o qual Nise trocou correspondências sobre o trabalho que ela realizava no Rio de Janeiro.

Roberto Berliner, como diretor, sabe manejar as ferramentas que possui na mão, mas, principalmente, na caixola. Percebe-se que os atores estão à vontade, apesar do dificílimo trabalho em representar pessoas com problemas mentais. Um ótimo trabalho de atores foi realizado para que cada um represente um tipo de paciente com problema diferente. Muitas cenas são poesia pura. O quadro que Berliner pinta com a câmera é tão belo quanto os quadros pintados pelos pacientes da doutora Nise.

Voltando a falar dos atores, não tem como não destacar Gloria Pires. Seja fazendo uma comédia, seja fazendo um drama – que pouco fez no cinema – a atriz carioca se destaca pelo cuidado com que aparece em cena. Glória sabe passar o sentimento que sua personagem vive naquele determinado momento: cenas nas quais Nise se mostra frágil com o que tem que enfrentar no trabalho por causa dos colegas, cenas nas quais a personagem precisa ser o esteio do outros para que tudo não se perca e tantos outros momentos do filme deixam claro a versatilidade do trabalho dela.

Os atores que interpretam os pacientes – ou como gostava de chamar a Doutora Nise, clientes – estão todos de parabéns. Sem fazer média, todos eles conseguiram mergulhar fundo na questão do problema mental. Merecem destaque nesse grupo de talentosíssimos atores, Fabricio Boliveira, Simone Mazer, Emydio Jaborandy e Bernardo Marinho. Os quatro mostram diferentes tipos de pacientes e os caminhos percorridos por esses ao longo das atividades realizadas no Setor de Terapia Ocupacional. As transformações pelas quais suas personagens passam ficam claríssimas, sem serem caricatas ou inverossímil.

Outro destaque vai para o ator Augusto Madeira. Apesar de ser mais conhecido por seus papéis cômicos feitos na televisão, Augusto também sabe, como todo bom ator, interpretar um papel dramático. Sua personagem é outra que acaba se transformando por causa da doutora Nise.

Transformações essas muito bem mostradas pela fotografia de Andre Horta (2 Filhos de Francisco: A História de Zezé di Camargo & Luciano, 2005). Responsável pela linda tela na qual Berliner pinta a história de Nise, Horta faz uma fotografia com planos simples e uma luz que se altera, assim como os pacientes de Nise. Com pouco, ele sabe bem que imagem mostrar para contar bem a história.

Imagens que foram muito sequenciadas pelos editores Pedro Bronz e Leonardo Domingues. Ambos já tinham trabalhado com Berliner. Respectivamente, Herbert de Perto e A Pessoa É Para O Que Nasce. Eles encadearam as cenas corretamente, dando à produção o ritmo certo. A história precisava ser absorvida com delicadeza pelos espectadores. Foi isso que eles conseguiram fazer. Dando o tempo necessário para que os acontecimentos possam ser compreendidos e guardados por aqueles que assistem ao Nise: O Coração da Loucura.

As pinceladas finais nesse quadro que conta a história da psiquiatra Nise da Silveira são dadas pelo músico Jaques Morelenbaum. Morelembaum compôs uma trilha que consegue acompanhar perfeitamente a história. Sem cair no sentimentalismo barato ou ficar grandiloquente, as músicas sensibilizam o público e assim prendem atenção dele nas diferentes histórias dos clientes que estão descobrindo uma forma de se expressar e tentar achar uma maneira de viver, apesar do seu problema.

Expressar personalidades brasileiras que nos emocionaram ou que tenham feito trabalhos que pouquíssimas pessoas conheçam, mas que foram fundamentais para a nossa história e para a história da humanidade: esse pode ser um lindo caminho que o nosso cinema pode percorrer e para o qual nós temos pessoas com sensibilidade e determinação para isso, como o diretor Roberto Berliner, Fabrício Boliveira e Gloria Pires.

Crítica | Nise: O Coração da Loucura (2024)
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Author: Jeremiah Abshire

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